sábado, 6 de março de 2010

Sem teto para voar - Cora Rónai




Podíamos até ser de quinta, mas a Varig era de primeira.

Houve um tempo em que o Brasil era um país subdesenvolvido. Ora, como era muito triste ver tanta gente desenvolvida vivendo num país subdesenvolvido, um gênio desses que andam por aí achou a saída perfeita para o problema: inventou uma nova expressão e passamos a ser um país em desenvolvimento, coisa que em muito melhorou a auto-estima das gentes. Isso se deu mais ou menos na mesma época em que gênios de outras partes do mundo criavam o termo "terceiro mundo" – que, aliás, nunca entendi direito, não por não saber diferenciar o primeiro mundo do terceiro, mas por nunca ter descoberto quem seria, ou onde ficaria, o segundo.

Ainda assim, quando viajávamos, continuávamos sendo cidadãos de quinta, pois o país em desenvolvimento não permitia que tivéssemos cartão de crédito internacional. E, por conta da diferença estratosférica entre o dólar "oficial" e o dólar em pessoa, o verdadeiro, éramos limitados à compra de meia dúzia de dólares por viagem. Para quem ia a negócios ali na esquina, rapidinho, até funcionava; para quem saía de férias e pretendia passar o mês viajando, mal dava para a saída. De modo que, viva a marginalidade!, éramos todos obrigados a recorrer a doleiros.

Viajar carregando na carteira aquela dinheirama era arriscado e angustiante. Tinha quem escondesse tudo na meia ou na cueca (Genoíno não inventou isso, é calúnia), usasse bolsa por dentro da blusa, bolsos falsos por dentro das calças e outras tantas precauções mais ou menos inúteis. E essa atrapalhação toda ainda não era nada diante da diante da dificuldade de se alugar um carro sem cartão de crédito. Éramos obrigados a deixar as passagens nas locadoras, além de um depósito milionário, como garantia de bom caráter. O subtexto era claro e, de resto, plenamente justificável num mundo capitalista: não tem cartão de crédito, não tem qualquer outro crédito.
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É claro que nem todo brasileiro passava por esses perrengues. Já então, gente de governo e políticos não se apertavam. Cartão internacional era com eles, com a vantagem de que nem ao menos pagavam a conta. A tradição, como se vê, vem de longe. Mas, assim como há o bom e o mau colesterol, havia também as boas exceções. Qualquer cidadão do maravilhoso país chamado Classe Média Alta que tivesse 50 mil dólares sobrando podia abrir uma conta lá fora e conseguir um cartão de crédito para circular feito gente pelo mundo civilizado. Era ilegal, e daí?

Eu pertencia ao time dos que tinham um bolso "secreto" costurado dentro dos jeans. Muitas vezes deixei de alugar carro para não passar pelo constrangimento de entregar à locadora a passagem e todos os meus bens terrenos. É um dos meus orgulhos de pobre; viajar como lixo nunca foi a minha idéia de um bom programa.
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Andei me lembrando disso porque o crime cometido contra a Varig voltou ao noticiário. Retórica à parte, a Varig nos tirava do terceiro mundo e nos elevava, no melhor sentido, a outras alturas. Impossível não sentir orgulho ao chegar a qualquer aeroporto do mundo e, ainda lá de cima, avistar as "nossas" aeronaves lá embaixo.

E as agências? Não me lembro de ter passado por qualquer capital onde não houvesse uma bela agência da Varig, sempre bem localizada, sempre com água, cafezinho e bons atendentes em bom português, verdadeiras embaixadas informais, não raro mais acolhedoras e mais eficientes do que as oficiais.

Por trás, porém, havia o que sempre há por trás das nossas administrações. Já conhecíamos bem alguns dos pecados da Varig, da rasteira na Panair à demora em criar um programa de milhas. Hoje, sabemos que voávamos numa espécie de tapete mágico, numa quimera que, na realidade, estava afundada em dívidas.
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Acontece que, a despeito disso, a Varig tinha algo muito mais precioso do que os seus aviões, prédios e outros bens materiais. Tinha uma experiência incomparável de Brasil. Sabia voar, porque tinha um time de profissionais extraordinários, que não se cria da noite para o dia. Enquanto a Varig viveu, a aviação brasileira funcionava, e inspirava confiança nos viajantes.

Qualquer guru da economia pode provar o contrário em meia dúzia de frases, mas estou convencida de que dinheiro não é tudo, nem na vida das pessoas, nem na dos países. O know-how da Varig; o conhecimento acumulado da sua maravilhosa rede de comandantes, engenheiros, comissários, mecânicos e funcionários de todo o tipo; tudo isso era um bem do Brasil, que qualquer governo decente e com um mínimo de visão teria lutado para manter.

Aos poucos, começa a vir à tona a história do assassinato premeditado de uma das mais queridas empresas brasileiras. Tarde demais. A Varig já não quer dizer nada. Os profissionais de que o país se orgulhava estão espalhados pelo mundo, a malha aérea que tão bem cobria o país se desfez, os preciosos slots dos aeroportos internacionais se perderam. Meia dúzia de compadres ficaram riquíssimos; o Brasil ficou incalculavelmente mais pobre.

Cora Rónai (O Globo, Segundo Caderno, 12.6.2008)

Colaboração João Angelo

Um comentário:

  1. Sempre soube que a jornalista Cora Rónai escrevia sobre informática e também sobre gatos, cotias e pacas, até que um dia li um artigo muito interessante sobre a Varig e somente ao final da leitura
    verifiquei que esse artigo era assinado por Cora Rónai.
    Constatei,então,que ela tinha conhecimento de muitas coisas a respeito da Varig e da trama que se desenvolvia nos bastidores do Poder no sentido de sufocar a empresa.
    Cara Jornalista, li posteriormente vários de seus artigos,escritos em diversas épocas e sempre pude admirar a forma como soube recordar, em todos esses artigos, a glória e a agonia dessa empresa emblemática, orgulho dos brasileiros.
    Os funcionários da Empresa muito lhe devem por todos esses artigos e têm a certeza de que quando vierem à tona as sujeiras do "caso Varig", ainda escondidas debaixo dos tapetes palacianos, a sua voz se fará ouvir, contribuindo, decisivamente, para não deixar cair no esquecimento a história mal contada da tal "recuperação judicial" da empresa!
    Cordialmente,
    Cte. Silvio Fróes.

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